Blog Pessoal · Por aí

Tem um estranho dentro do meu carro

Foram três batidas.

As duas primeiras eram secas, não pareciam próximas. A terceira… Foi um estouro agudo.

De repente, o banco ao meu lado estava cheio de cacos de vidro, e metade de um homem se debruçava na janela para dentro do meu carro.

Estava acontecendo comigo? … É, eu estava sendo assaltada.

A criatura se inclinava com esforço para pegar o celular fixado no painel do carro. Olhava com um desejo que eu nunca vi igual, e esticava impacientemente as mãos na tentativa de pegar o objeto luminoso.

A tela brilhante em meio à escuridão parecia uma bela oferta de carne à quem morria de fome, só não sei de quê. Comida? Vício? Status? Tanto faz.

Mãos para cá, mãos para lá, o olhar não perdia o foco. Nunca vi tanta obstinação em um olhar. Não me lembro dele me olhar na cara. Era só a tela brilhante que interessava.

Aí eu comecei a gritar. Depois, com tapinhas toscos, comecei a tentar empurrá-lo para fora.

Fui completamente ignorada.

Abre farol, abre farol… anda logo…

se abrir eu consigo sair daqui.

Em questão de segundos, um turbilhão de pensamentos sobre lutar ou fugir me vieram à mente.

Tento bater mais forte nele? Tento empurrar ele? Tento enforcar ele com o cabo de som do meu carro? Acelero para bater no carro da frente, ou dou marcha ré? E se ele cair completamente para dentro? E se ele estiver com mais alguém que eu não consigo ver? E se ele me machucar?

Meu coração estava acelerado e minha mente trabalhava na velocidade da luz, mas eu não conseguia tomar nenhuma decisão suficientemente boa.

No fim, só gritei e dei tapinhas frouxos.

Podem rir.

Segundos antes: um grande vacilo?

Segundos antes, eu mexia no Spotify procurando alguma música relaxante depois de um dia exaustivo. Afinal, ia para casa tarde da noite depois de um longo dia de trabalho e estudos.

Eram 22:40, eu estava na rua Manoel Dutra, próxima à Avenida 9 de Julho. Farol fechado, com o carro na faixa à direita do lado de um muro de escola.

Presa fácil, eu sei.

E não foi por falta de aviso.

Lembro que, no primeiro dia de aula da pós-graduação, parei o carro em um estacionamento próximo. Lá, um senhorzinho me avisou: Moça, não deixa o celular no painel e a bolsa no banco da frente, tem muito assalto por aqui à noite.

E eu juro pra vocês que segui os conselhos do senhorzinho! Segui do meu jeito, mas segui. E deu meio certo. Peraí, vou explicar!

É que eu não deixei a bolsa no banco da frente. Deixei na área dos pés do banco da frente e, em cima, coloquei a bolsa de marmita. Era uma bolsa muito simpática, bastante colorida, com um grande poder de distração. Juro!

A lógica era simples: se quiserem pegar minha bolsa, terão primeiro que pegar a bolsa da marmitaVoilà!

Ahh, caro leitor! Vai me dizer que você nunca, nunquinha, usou seus sagrados neurônios para criar técnicas super elaboradas para dificultar a atuação de meliantes? Pois bem!

As listras coloridas da bolsa tiveram eficácia comprovada: o homem não quis nem saber de tanta fofura.

Era só o celular, celular, celular.

A captura.

Sem saber o que fazer, eu só torcia para o farol abrir logo e ele não entrar dentro do carro.

Não sei quanto tempo demorou tudo. Suponho que menos de um minuto. Só sei que, quando ele conseguiu o que queria, o farol ainda estava fechado.

A tela luminosa desapareceu do meu painel e surgiu nas mãos dele. Ele saiu correndo, descendo a rua, enquanto eu via tudo pelo retrovisor. Senti ódio.

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A vontade era de ir atrás, agredir. Mas, melhor não. Isso não vai dar em nada e agora já foi, deixa para lá. Mas eu via ele descendo e virando a esquina, posso alcançá-lo, pular por cima e… Deixa de ser idiota. Vai para casa. Fui.

Duas sensações intensas

Inquietação

Durante o episódio, eu me sentia gelada e cheia de energia. A sensação de “frio” é praticamente um anestésico e o choque de energia me deixou cem por cento focada no que acontecia. O mundo ao redor parecia não existir.

Quando caiu a ficha do acabou, demorou algum tempo até essas sensações diminuírem.

A partir de então, outras preocupações vieram à mente: preciso avisar meus pais, preciso bloquear meu celular, preciso mudar todas minhas senhas, preciso voltar para a casa com esse vidro todo estilhaçado, preciso fazer o B.O…

Parei o carro em um posto de gasolina e pedi ajuda. Enquanto eu ainda estava ligada nos 220V, as pessoas ao meu redor me olhavam com uma cara de dúvida, de quem não entendia nada.

Tudo parecia devagar demais para mim. Eu tinha acabado de ser assaltada e eu só queria um telefone e abastecer o carro! Qual a dificuldade de entenderem logo isso?

Já em casa, depois de resolver o que dava para ser resolvido, chegou a hora de (tentar) dormir. Tomei um banho quente, tomei chá de camomila, tentei meditar.

Mas tudo o que me vinha à mente era a cena dele estourando o vidro. O som dele estourando o vidro. O rosto dele quando estourou o vidro.

Culpa

A gente ouve por aí que não é para culpar a vítima. Mas, se um dia você já foi vítima de um crime ou já passou por alguma situação traumática, sabe que seus pensamentos sobre culpa vão surgir sozinhos. Ninguém precisa falar nada.

Eu deveria ter sido mais atenta e não ter colocado o celular no painel. Vacilei demais quando fui mexer no celular no farol parado. Por que raios eu peguei a faixa que fazia frente para o muro da escola, local escuro e vazio? E se eu tivesse tentado bater mais forte? Por que eu não tentei enforcar ele? Ele podia ter feito algo pior e eu dei brecha… Vacilei, vacilei!

Foram quase duas semanas com vários pensamentos sobre ‘o que eu poderia ter feito e não fiz’ e com visões da cena dele estourando o vidro.

Dentro de mim eu sabia que era questão de tempo para passar e focava minha atenção em outras coisas, mas se dissesse que é fácil lidar seria mentira.

E depois?

O primeiro mês após o assalto foi cheio de sensações de ‘isso vai se repetir’. Parecia que, a qualquer momento, meu espaço seria violado de novo.

Eventos assim fazem a gente experimentar a sensação de falta de controle. E nós, humanos, não gostamos disso. Estamos acostumados à ilusão da estabilidade e das certezas.

Aí, vem a vida e joga um balde de água fria sobre a nossa cabeça, ao mesmo tempo em que ri da nossa cara e grita “Você se esqueceu do acaso! Lide com o acaso!”. Afinal, quantas e quantas vezes eu não mexi no Spotify, à noite, no farol fechado, e nunca deu nada?

Mas, depois de algum tempo, o medo passou.

Se algum dia você passar por situação parecida e se quer um conselho, se esforce para continuar vivendo normalmente. Essas experiências marcam a gente, é inevitável. Mas manter o foco em outras atividades e em recuperar a rotina ajuda a trazer de volta a sensação de está tudo bem.

E, apesar do assalto ter sido algo muito ruim de viver, coisas curiosas e divertidas aconteceram depois.

Foi graças à criatura que eu conheci uma delegada arretada e um restaurante delicioso…

Mas isso fica para um próximo post 🙂

E você? Já passou por um assalto? Ou por alguma situação traumática? Como você está hoje? Me conta nos comentários!