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Saia do automático e espalhe gentileza: a lei do retorno pode ser boa

É difícil não se deixar abater pelo cotidiano. Mesmo caminho, mesmas pessoas, mesmo trabalho. É como se, para evitar questionamentos sobre os rumos da vida – normalmente acompanhados de uma pitada de sofrimento, arrependimento e sentimentos afins – entrássemos no modo automático, aceitando inconscientemente nosso destino, seguindo a manada.

E quando se trabalha e estuda, então, as chances de você se tornar uma máquina automática, extremamente ansiosa e movida à cafeína, é mil vezes maior, dizem uns especialistas por aí.

O problema de entrar no modo automático é que perdemos a chance de dirigir o olhar a outras situações que podem transformar nosso dia. Elas estão sempre aí, à espreita, dispostas a nos trazer alguma alegria. Vou contar para vocês duas situações que me lembro agora e que aconteceram durante meu trajeto a pé faculdade-trabalho e trabalho-faculdade.

O amuleto da sorte

Em julho de 2015 viajei para Europa com mais duas amigas. Quando voltei para o Brasil ainda tinha algumas moedas de euro na carteira misturadas com moedas de real.

Após o retorno das férias, cotidiano normal. E nada mais normal do que fazer meu trajeto trabalho-faculdade no horário do almoço, pois, como os lugares são bem perto um do outro, costumo almoçar no bandejão (santo bandejão!).

Na volta do almoço eu estava muito a fim de uma sobremesa, e perto do prédio em que trabalho há alguns homens vendendo fruta na rua. Parei em uma banquinha e pedi um pouco de melancia.

– Dois e cinquenta, moça.

– Aqui está…

Em uma das orelhas eu estava com fone ouvindo música bem alta e, distraída com a música, viajando em pensamento, peguei as primeiras moedas que vi na carteira e que pareciam com a moeda de um real e entreguei. Depois de pagar, virei de costas e fui descendo a rua.

– Ei moça, moça, pérai.

Ouvi de relance, mas achei que não era comigo e continuei. Até que senti um toque no ombro. Tirei o fone de ouvido.

– Moça, péra. Ó, acho que você me deu uma moeda de relíquia.

– Relíquia?

– É ó, tem um rosto aqui, não sei o que tá escrito.

Ele me estendeu a palma da mão e lá estava ela, brilhando sob o sol do meio dia da Sé, a moeda de um euro espanhola, o rosto do rei Juan Carlos reluzente na prata e a palavra ‘euro’.

– Ah, é um euro em moeda. Não é relíquia não! Mas veja só, com ela você não vai conseguir comprar nada aqui. Deixa eu pagar direito, então.

Abri a carteira e dessa vez me certifiquei de entregar uma moeda de um real. Quando mencionei que era uma moeda de euro o senhor fez uma cara de quem não entendeu e, aí, fiquei com dúvida de se ele sabia que aquela moeda valia, na época, quase quatro da de um real. Mas isso pouco importa.

– Ó, tá aqui, um real certinho. Mas pode ficar com essa daí! Fica para o senhor, ela é diferente mesmo, é bem legal.

– Poxa, agradecido!

Um tempo se passou até que novamente fui comprar as suculentas melancias. Quando estava terminando de pagar, fui surpreendida.

– Moça, sempre que vejo você passar por aqui lembro da moeda. Sabia que dei ela para minha filha? É, ela tem oito anos e agora fez da moeda o amuleto da sorte dela. Ela ficou toda feliz.

Feliz fiquei eu com essa notícia. Meu coração se encheu de calor. Uma gentileza despretensiosa um dia e algum tempo depois um retorno melhor ainda.

Minha moeda de um euro era, agora, o amuleto da sorte de uma garotinha simples, cheia de vida e de sonhos pela frente. Fiquei me perguntando onde será que ela a guardava, se tinha contado para as amigas, se sentia vibrações de sorte e se, no futuro, descobriria que era apenas uma moeda de um euro.

Mas que bobagem minha, é claro que não é só um euro! É uma relíquia sim, afinal, é o amuleto da sorte da menininha.

Você sabe onde fica a José Bonifácio?

Como de costume, por volta das seis, sete horas, saí do trabalho e fui a pé para a faculdade. Faltava apenas um farol para atravessar e chegar à São Francisco. Estava no cruzamento da Cristóvão Colombo com a Riachuelo aguardando a travessia de pedestres, naturalmente com fones de ouvido, volume alto e muita pressa.

Verde! O farol de pedestres ficou verde! Hora de atravessar! Mas, espera. Notei que à minha frente estava uma senhorinha idosa, rostinho bem enrugadinho, costinhas bem curvadinhas, tão frágil, carregando um carrinho de feira cheio de livros velhos. Ela parecia tentar perguntar alguma coisa aos demais pedestres ali e todos passavam reto. Nem sequer a olhavam na cara. Tirei os fones de ouvido e olhei em sua direção.

-A senhora precisa de ajuda?

– Oi minha linda, preciso sim. Onde fica rua José Bonifácio? Eu estou perdida, vim sozinha de longe deixar esses livros num lugar lá, não lembro como chega.

Poxa vida, ela queria saber de localização e se tem uma coisa na qual eu sou péssima, é isso. Mas graças à Deusa existe smartphone, 3G e Google, para o mal e para o bem.

– Olha senhora, eu não sei te dizer… Eu sei que está perto, mas não sei. Posso tentar checar aqui para a senhora, você pode esperar um pouco?

Saquei o celular do bolso e tentei acessar o Google Maps. Não sei por que – deve ter sido a ansiedade – não consegui achar a José Bonifácio da Sé, só uma de São Bernado do Campo.

– Olha senhora… Aqui não estou conseguindo achar. Mas logo ali em frente tem o porão da faculdade e lá tem computador, posso ver se consigo procurar para você lá. Você pode vir comigo?

– Claro, obrigada.

Desci as escadas do porão e ela ficou na porta me esperando com seu carrinho. O centro acadêmico estava fechado, só me restava contar com a boa vontade da moça que trabalha na xérox. Ela tinha um computador para que os alunos acessassem os arquivos que gostariam de imprimir.

Pedi licença e perguntei se poderia entrar no Google Maps para localizar a rua e imprimir a rota para a senhorinha que me esperava. No mesmo momento, além da moça da xérox me deixar imprimir sem custo algum, um colega meu de sala que estava usando o computador cedeu para eu usar no seu lugar. Duas gentilezas fruto da solidariedade com a senhorinha que, há pouco, estava sendo ignorada por outros pedestres. Existe, sim, amor em SP.

Localizei a rua, tracei a rota, marquei-a com marca texto amarelo e levei o papel para a senhorinha.

– Olha, você vai reto aqui, vira aqui à esquerda, vai reto e atravessa o farol… Vai até o final que aí a senhora já chega na José Bonifácio. Está tudo aqui no mapa que eu imprimi, está em amarelo. Ok?

– Obrigada minha linda, muito obrigada. – Ela segurou na minha mão e me olhou nos olhos – Sabia que eu tenho cem anos já? E posso dizer que não é sempre que se vê alguém de coração tão bom. Você foi muito gentil em me ajudar, você merece toda a benção. A minha benção para você. Que seja muito feliz e tenha muita saúde.

Naturalmente eu esperaria um agradecimento, mas não do modo como foi. Não foi só gratidão. Fui abençoada. Olhos nos olhos. Abençoada pela senhorinha de cem anos. Cem anos! E ela estava lá, toda independente andando ao anoitecer sozinha no centro de São Paulo! Espero a benção dela me dar um pouco de tamanha vitalidade e independência.

Até então eu estava ansiosa para chegar na aula de processo civil. Depois disso eu só queria abraçar aquela mulher e mandar todas as normas e códigos para o espaço. Para que regras quando as pessoas podem se guiar pelos melhores sentimentos do mundo?

Enfim, são só alguns exemplos pessoais que, a meu ver, confirmam que é deixando de ser máquina que a gente consegue se sentir humano. É sendo gentil com os outros que, no fim das contas, estaremos sendo gentis com nós mesmos. A lei do retorno também pode trazer coisas boas (não deixe seu cotidiano acabar com elas).