Direito · Por aí

Metrô, música e um muro invisível

Não sei vocês, mas é comum eu ouvir música ou ler algo quando estou no ônibus ou nos trens. Às vezes, quando estou sem nada para me distrair, parece que a lotação fica ainda mais lotada ou o trajeto fica ainda mais longo, me deixando impaciente.

Mas, em outras vezes, justamente quando estou sem nada para me distrair, me pego atenta ao que os outros passageiros conversam ou fazem e, de tão interessante, o tempo voa.

Já faz algum tempo, durante o caótico embarque e desembarque de passageiros na linha vermelha do Metrô, estava concentrada em equilibrar a bolsa de trabalho num ombro e lancheira de marmita no outro, quando ouvi uma melodia doce, cantada por uma voz masculina, de um jeito bem suave.

Era tão bonito. Quem será que estava cantando?


‘Cause all of me
loves all of you
Love your curves and all your edges
All your perfect imperfections
Give your all to me
I’ll give my all to you
You’re my end and my beginning
Even when I lose I’m winning
‘Cause I give you all of me
And you give me all of you,
oh oh

Eu já tinha ouvido essa música em algum lugar, mas não conseguia me lembrar da melodia ao certo. Meus ouvidos acompanharam com atenção o sussurro tímido da música. Timidamente, meus olhos procuraram ao redor pelo cantor.

E eles pousaram em um rapaz alto, negro, de uns vinte anos, do meu lado esquerdo. Ele e seu amigo se destacavam pela cor em um vagão predominantemente branco.

A melodia suave continuava e eu senti vontade de interromper e perguntar o nome da música. Depois, a vontade cresceu e passou a ser de perguntar se ele estaria disposto a cantar ela comigo algum dia. Seria invasão demais?

Existia entre nós um muro invisível construído pela minha mente. Eu poderia educadamente interrompê-lo, perguntar e fazer a proposta. Caso ele se negasse, nada mudaria. Caso ele aceitasse, poderia sair um trabalho legal. Mas fiquei inerte.

A melodia foi interrompida pelo amigo:

– E ai, o que você vai fazer? Já sabe se vai fazer faculdade? – O português carregado denunciava que eles eram imigrantes.

– Olha, ganhando 1.500,00 não consigo pagar faculdade, são muito caras, vou tentar bolsa em uma que a mensalidade é 750.

– Mas o que você quer fazer?

– Direito.

– Por que você não tenta uma pública?

Direito. Em uma universidade pública. A vontade de conversar aumentou ainda mais.

Queria dar conselhos. Falar da Fuvest. Falar da aprovação de cotas para estudar direito na USP. Falar dos grupos de extensão. Falar de várias coisas que vivi na São Francisco… Falar.

Continuei inerte.

– Ah, para isso precisa resolver muita burocracia… Parece que preciso naturalizar, preciso ter documentos de angolano naturalizado brasileiro.

O trem parou no Brás. Até a Sé ainda restavam alguns minutos para tentar manter algum contato.

Enquanto eu tentava resolver o conflito interno entre “falo” e “não falo“, os dois rapazes, que estavam em pé ao meu lado, distanciaram-se e sentaram em bancos que haviam acabado de ficar livres.

O cenário era outro e o muro cresceu: seria ainda mais constrangedor segui-los e revelar todo meu interesse secreto na conversa deles?

Meu conflito interno foi solucionado à fórceps: “PRÓXIMA ESTAÇÃO, SÉ. DESEMBARQUE PELO LADO ESQUERDO DO TREM”.

Quando dei por mim, era hora de desembarcar.

Não conheci o rapaz porque, naquele momento, não consegui romper com um muro criado por mim mesma. “E se?…”

Nessas andanças da vida, é na tentativa de conhecer o outro que a gente mais se conhece.

Espero um dia reencontrá-lo cantando melodias doces nos Fóruns.